John Romão

Diretor Artístico

Na marginalidade do mundo comum

Angélica Liddell, Marlene Monteiro Freitas, Pedro Barateiro, Horácio Frutuoso, Pedro Barateiro, Meg Stuart, Jonathas de Andrade, INMUNE – Instituto Nacional da Mulher Negra em Portugal, Jonas & Lander, Marina Abramovic, Jonathan Saldanha, William Forsythe, Vasya Run, Tania Bruguera… estes são apenas alguns dos nomes reunidos na segunda edição da BoCA, que está de regresso, agora a Lisboa, Porto e Braga, para provocar, reforçar ou reformular relações improváveis. Afinal, estes são tempos improváveis, instáveis, precários, desenraizados, de tensão e colisão entre forças poderosas, que vão do desejo e sexo à guerra e à aniquilação. Há no ar renovados movimentos de reinvindicação de direitos, um extremar de posições, que trazem para a arte a experiência das margens e a sociedade em convulsão.

A BoCA é um “fora do lugar”, é “extradisciplinar”, desafia-nos a mudar de posição – sejamos espectadores ou cidadãos -, acompanhando as deslocações transgressoras dos artistas (como os chilenos Ciudad Aberta que aqui chegam numa viagem performativa). No espírito das muitas crises que vivemos – de migrantes, de extremismos, das mudanças climáticas, das desigualdades, de valores, da memória –, estes criadores estão em permanente movimento e inquietação, entre linguagens artísticas, entre geografias, entre identidades (nacionalidade, sexualidade…). Nesta BoCA 2019, Beyoncé é evocada numa celebração religiosa dirigida pela pastora Yolanda Norton (USA), o pole dance do submundo de Nova Iorque é expressão de virtuosismo e inquirição sobre raça, discriminação e identidade (Gerard & Kelly), o fotógrafo Wolfgang Tillmans vem dar um concerto de música electrónica. Neste espírito de abertura ao outro e à diferença, Gonçalo M. Tavares & Os Espacialistas ativam um “espaço efémero para a Arte Direta” na performance que é “Laboratório de Formas de Sentir Acima da Média”, que é também disso que a BoCA trata

Na BoCA 2019, vamos sedimentar os nossos conceitos estruturais e a nossa prática, através das sinergias desenhadas entre cidades, entre equipamentos culturais, entre territórios artísticos e entre públicos diversos.

A BoCA reafirma e consolida o seu lugar de agente ativo e decisivo num trabalho que se processa em diferentes escalas: no investimento e difusão da diversidade, cultural e artística; na integração e empoderamento de diferentes comunidades, minorias e etnias; na descentralização da oferta cultural dentro de cada cidade, dentro de cada região e fora dos grandes centros; na investigação de formatos de programação em escalas locais, inter-regionais e nacionais; na valorização do património material e imaterial, através da programação em equipamentos patrimoniais e da investigação de novas dinâmicas urbanas que associamos à expressão imaterial que funda a nossa cultura contemporânea.

São mais de 50 parceiros institucionais que nesta edição se associaram à BoCA. No biénio 2019/2010, a BoCA leva mais longe a sua vocação de projeto que compreende uma dimensão nacional, um só corpo constituído por diferentes cumplicidades e estendendo-se a diferentes regiões do país. A sua escala excede fronteiras e regionalismos, aprofunda relações e afetos, dinamiza novos futuros, pratica a inclusão, a diversidade e a itinerância como elementos estruturantes da sua identidade.

Em 2019, a BoCA solidifica a sua linha programática, assente numa programação expandida por diversos equipamentos culturais; na encomenda de novas criações de artistas que desenvolvem linguagens extradisciplinares; no desafio para a criação de novas obras em territórios estrangeiros àqueles de que os autores são especialistas; na apresentação de obras que revelam novas identidades (marginais) de artistas internacionais; e na recontextualização espacial de criações existentes, potenciando novas leituras, também elas inclusivas por reunirem públicos provenientes de circuitos e sensibilidades muito diversos. Esta comunhão, a meu ver, supera noções de multidisciplinar, indisciplinar ou transdisciplinar. Proponho por isso uma prática “extradisciplinar” (Brian Holmes, sobre Sujeitos Comunitários), porque procuramos um terreno inovador e fértil, potenciador do mapeamento de uma nova topografia afetiva e cultural.

A programação remete para uma dramaturgia contemporânea, em que a articulação de todos os elementos – os artistas, os campos de intervenção e de imaginação, os lugares ocupados pela programação e toda uma construção de espaços efémeros – traduz uma unidade significante, onde participa a ordem da particularidade e pluralidade do mundo em que vivemos, de coexistência de muitas diferenças: temporais, espaciais, culturais, de escala. Esta unidade contribui para a construção de um “mundo comum”, como Hannah Arendt o definiu, ou seja, um mundo definido pelo que é partilhado publicamente entre individuos diferentes.

Num tempo de identidades fraturadas, abraçamos a fragmentação e a partir dela tentamos configurar uma dramaturgia sobre a união. O que é isso de pertencer a um momento de fragmentação social e política mundiais? O que é isso de o poder apagar identidades e biografias que foram pioneiras? O que é isso de a História ser reconstruída pelo poder, reescrita em seu proveito? E de o feminino ser escrito com mão masculina? Re-contar a história, re-definir identidades, géneros e nacionalidades. A programação da BoCA 2019 coloca ênfase nas políticas de identidade, de raça e de género, e continua a refletir sobre as dimensões do ritual e do sagrado presentes na nossa contemporaneidade.

Voltamos a estar próximos dos artistas nacionais e internacionais, produzindo e co-produzindo 22 novas criações em estreia mundial e apresentando 12 criações em estreia nacional. Todos os artistas desta edição são fundamentais na construção do puzzle maior que é esta programação e que se desenrola em três cidades. Cada um é um mundo que importa frequentar, mais até do que apenas visitar, nomeados sem qualquer ordem ou hierarquia. Rui Chafes, Vera Mantero, Mariana Tegner Barros, Milo Rau, João Pais Filipe, João Pedro Rodrigues & João Rui Guerra da Mata, Ryan Trecartin, Otolith Group, Joana da Conceição, Kukuruz Quartet, Volmir Cordeiro, Maria Trabulo, Adolfo Luxúria Canibal… Sublinhando que este é um desenho de uma programação em que todos são igualmente fundamentais, tenho, no entanto, de manifestar o entusiasmo com os Artistas Residentes no biénio 2019/2020: Marlene Monteiro Freitas, Horácio Frutuoso, Diana Policarpo e Gerard & Kelly, cujas obras daremos a conhecer em contextos diferentes ao longo deste período.

Agradeço a todos os parceiros que viabilizaram esta segunda edição, que junta a cidade de Braga às cidades de Lisboa e do Porto, aos públicos que nos têm acompanhado e àqueles que nos irão descobrir pela primeira vez. A curiosidade, o risco e a descoberta pautam-nos a todos em mais uma edição.