Palcos inversos: o espectador como actor (três filmes de Ulla von Brandenburg)
Palcos inversos: o espectador como actor
(Três filmes de Ulla von Brandenburg)
O cenário é imaculadamente branco e livre de quaisquer elementos cénicos. Duas escadas sobem até uma plataforma que cria um segundo palco. Três bailarinos entram em cena. De mãos dadas, correm. Todos se vestem de branco. Os das pontas usam tecidos coloridos pelas costas, a do meio, mantém-se sem nada. Três cores se sucedem: azul, branco, vermelho. Sobem uma das escadas e largam a bailarina de branco que se deixa cair pela segunda escada ao ritmo da música. Tomba sobre o chão. O seu corpo é levado.
Começo por este pequeno episódio (se é que lhe poderei chamar episódio) de It has a golden sun and an elderly grey moon de Ulla von Brandenburg. O exercício poderia ser perigoso, uma vez que todos os filmes desta artista, ao serem executados em plano de sequência, rapidamente afastam a ideia de uma narrativa segmentada ou composta por diferentes momentos – as imagens surgem encadeadas – reflectindo um processo mental em contínuo. Particularizar seria refrear esse processo. Mas valerá a tentativa. Este excerto, pela força simbólica que concentra e pela sua capacidade de nos trazer novas imagens, outros níveis de compreensão e significação (reminiscências de uma memória visual construída), é de si indicador do programa estético de von Brandenburg e da sua destreza em reunir, sob o mesmo plano imagético e particular, indícios sensíveis ao questionamento de uma realidade-questão universal. Uma metáfora-imagem-movimento.
Os três bailarinos correm de mãos dadas e rapidamente, pela sucessão das suas cores, vemos surgir a bandeira francesa. A mesma cena poderia lembrar a famosa corrida no Louvre celebrizada por Godard em Bande à part (1964). O acto é igualmente transgressivo e evoca, desde logo, uma ideia claramente modernista: o rompimento com a forma antiga, com o sistema de valores precedido. Mas onde, nas personagens de Godard, a atitude jovem e desafiante revigora metaforicamente um anseio positivo do seu realizador (a vontade de mudança estética face a uma ordem anterior, simbolicamente representada pelas obras-primas do Louvre, representativas dos cânones clássicos da história da arte), nos bailarinos de von Brandenburg essa atitude presentifica o cepticismo num estado presente e um certo saudosismo passadista. Uma construção que se desmorona. Uma França, como signo da cultura ocidental, ou de cultura per si, que cai sobre os seus próprios pilares. Ou seremos nós, enquanto individuos em sociedade, enquanto indivíduos para a sociedade, que nos estaremos a afastar deles?
Três filmes foram apresentados nesta bienal – Shadowplay (2012) e Die Stra?e (2013) na Casa-animal da Musa paradisiaca e It has a golden sun and an elderly grey moon (2016) no Teatro da Politécnica. Mais de uma semana separa o momento em que os vi e o momento em que escrevo este texto mas, mesmo se não tivesse a determinação da escrita, a força destes objectos permaneceria no meu pensamento. Talvez porque derradeiramente eles falem de nós, de nós enquanto construtores de um estar social e do papel (da personagem) que desenvolvemos e exploramos nas relações que criamos.
Shadowplay poderá introduzir a questão. Três actores entram em cena. Como num teatro de sombras, simplesmente nos chegam silhuetas demarcadas que vemos vestirem os seus figurinos. Entrando nas suas personagens, desenrolam uma acção. No fim, um pano transparente é estendido e os actores, utilizando pequenas figuras que reproduzem as suas próprias personagens, simulam a mesma acção. Um jogo entre realidade e ficção é desencadeado (a ficção de uma ficção, melhor dizendo), a fronteira entre personagem e representação é diluída. Os actores dimensionam a sua presença como extensão de si próprios e de nós enquanto espectadores – eles representam-nos – e, por deriva, representam o mundo. Um mundo-palco, onde todos desempenhamos diferentes papeis (seremos sempre a mesma pessoa? quantos eu há em mim?) .A ilusão revela-se a si própria e desperta estados de um inconsciente sensorial (as sombras isso propiciam enquanto um lugar de imaginação) onde novas imagens emergem. É neste espaço de possibilidades e na vertigem consciente do indivíduo enquanto actor de si próprio que os filmes de Ulla von Brandenburg se revelam enquanto mecanismos dialécticos e se abrem como corpo multiforme.
Mas voltemos um pouco atrás. Voltemos à queda da bailarina e voltemos a It has a golden sun and an elderly grey moon. Há uma predisposição, nos filmes desta artista, em contemplar de forma mais ou menos constante, nessa volição estética de questionamento do indivíduo social, uma ideia de ritual como vector construtor de uma comunidade e fundador de relações humanas. O ritual enquanto marca de uma consciência comunitária e enquanto marca de uma identidade quase inconsciente (o paradoxo é aparente).
Sentimo-lo desde logo neste filme. Digo sentir porque falamos de experiência. Sentimo-lo nos movimentos dos bailarinos e na forma como o corpo é libertado em favor de um movimento instintivo que parece substituir a linguagem, um movimento que devem espaço e que devem grupo, em coreografias que rapidamente associamos a danças pagãs ou à dança expressionista alemã, também ela imbuída na procura dessa união entre o homem e a natureza – uma origem matricial a um plano da existência e da comunhão entre indivíduos. Um ritual poderá ser isso: a busca pela consciência do corpo, pelo seu instinto.
Mas levantemos ainda essa vocação ritualística nas trocas de objectos que os bailarinos efectuam em palco ou, principalmente, nos tecidos coloridos em torno dos quais se gera toda a acção. Nesses tecidos, o uso da cor é ali trazido na sua componente simbólica e diegética. Apela-se a uma inconsciência subcutânea, despertam-se memórias e significados para-psicológicos em associações elementares quase imediatas às cores que vão surgindo. Uma psicologia da cor. Uma redução minimalista da forma de percepção.
É curioso pensar estes pedaços de tecido, quase humanizados e desencadeadores das cerimónias que testemunhamos, enquanto isso mesmo – enquanto objecto de uma narrativa, enquanto narrativa eles mesmos – no contraponto ao uso instalativo que von Brandeburg tem feito, em outros momentos, de grandes áreas de pano como barreiras-entrada do espectador na sala de exposição e como cápsulas-casulo onde o mundo imaginário e teatral da artista se desenrola.
Desviando estes panos de um valor meramente utilitário ou indicativo de uma passagem, o filme trata da própria passagem, é a passagem – as relações ambiguam-se. Nestas transferências de imagens-acção e na personificação deste símbolo primeiro de entrada no universo do teatro – espaço da representação, do engano, da aparência – Ulla von Brandenburg funde e imiscui actor e espectador, através do ecrã. Quem está aquém daqueles panos? Seremos nós actores e os bailarinos espectadores das nossas acções? É pois num confronto de invisibilidades bidireccionais, numa relação de refracção e redimensionamento dos papéis tradicionais de visualidade do espectador, que o trabalho desta artista surge na forma de um meta-texto especulativo das formas de vivência actuais. Somos nós a encenação. (Já o havíamos pressentido em Shadowplay)
A partir daqui poderemos desenhar uma abordagem conjunta aos filmes de Ulla von Brandenburg onde o ritual assoma uma propensão enunciativa a esse questionamento. Importa, antes de mais, encarar essa reformulação do lugar do espectador, pela interligação do tempo da obra ao tempo da sua visualização (desde logo reforçado pela filmagem em plano de sequência) onde a noção de temporalidade criada sublinha uma aproximação entre arte e vida, reequacionando os próprios mecanismos do teatro de que a artista se serve.
Mas detenhamo-nos novamente na ideia de ritual e na sua potencialidade representativa. – (não me esqueci da bailarina em queda)
Como havia dito, é enquanto acto de surgimento de um ideal de comunidade que o perspectivamos. Índice de uma relação criada num contínuo temporal, o ritual surge como força de união, como vínculo de pertença, como formulador de uma consciência partilhada – de uma identidade comum pelo sentimento de paridade e partilha. Ele poderá ser revelador, ou unificador, dessas relações estabelecidas pela troca de experiências físicas, materiais, onde a co-presença dos indivíduos, o sentimento de comunhão e troca sensível, comunica desde logo uma disponibilidade à existência em comum. Ainda o conseguimos fazer? Ainda seremos nós capazes de ritualizar a nossa presença no mundo e devir mundo? As nossas relações ainda se poderão fundar na experiência com o outro?
Evocar essas situações não deixará de consubstanciar uma certa sensação de estranhamento. O mesmo estranhamento que a personagem principal em Die Stra?e mostra ao entrar naquela comunidade e ao testemunhar as cerimónias e acções que ali têm lugar, onde o canto unifica os seus habitantes que ali vivem despreocupados. Um lugar onde o dinheiro não entra. Um retorno à arcádia? A uma forma longínqua de existência? (reset?)
É pois com a consciência dessa impossibilidade que Ulla von Brandenburg abre uma fenda crítica através dos seus filmes. Fá-lo na tentativa de um retorno à origem das relações, à sua pureza, a um tempo passado conjecturando uma possibilidade futura (traz-nos locais sem tempo e sem espaço). Ainda assim, notamos a trágica vertigem de uma descrença. É por isso que a bailarina cai.