Iniciação à contra-espionagem + Rituais de prazer e punição num primeiro dia na história da bienal BoCA | Texto de Cláudia Galhós

BoCA
16 Março 2017

Iniciação à contra-espionagem

Rituais de prazer e punição num primeiro dia na história da bienal BoCA

 Texto de Cláudia Galhós / BoCA

“As mesmas características da performance que facilitam as suas alianças com a violência – a sua capacidade de fazer a vida desaparecer, o desfocar das aparências, os seus excessos sensuais e os efeitos desestabilizadores – têm sido mimetizados criticamente por estudiosos e praticantes da performance investidos em tentar compreender e praticar uma política da performance que possa contestar a violência e a desigualdade, e contribuir para a emergência de um mundo melhor.” (in “Performance in a time of terror – critical mimesis and the age of uncertainty”, de Jenny Hughes, 2011)

Poucas semanas depois da eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, as notícias davam conta de um aumento substancial da compra do livro “1984” de George Orwell (de 1949). Algo incompreensível se está a passar para um tamanho interesse naquele texto, num tempo em que passaram quase 70 anos desde a publicação do livro, que previa um futuro que se concretizaria mais de três décadas depois dessa primeira edição, e que para a nossa actualidade, em 2017, é já um passado que se vai distanciando rapidamente.

Esta confusão dos tempos, que convergem para uma coexistência numa actualidade desconcertante, é sinal de que vivemos um momento particular na história do mundo. Escapa-nos talvez, ainda, a capacidade de compreensão e visão clara do que está em causa. Os artistas, esses visionários do desconhecido, do oculto, do invisível, do obscuro, do caótico, integram sinais das distopias que conduzem os nossos dias, tanto nas questões e conteúdo que abordam nas suas peças como nas estratégias e mecânicas da criação artística, e também na estética que desenham. É também isto que está em causa na bienal BoCA e é imediatamente evidente no programa do primeiro dia.

Desafiar uma sociedade de controlo é urgente e escuta-se nas vozes que se fazem ouvir nesta primeira edição da BoCA. Está em causa uma sociedade, onde todos somos alvos fáceis a abater, não apenas por actos terroristas materializados em ataques reais mas também por via da vigilância, do acesso às mais diversas esferas da vida, onde o privado pode a qualquer instante ser invadido e tornado público, onde aparentemente todos podemos ter acesso a tudo… Há uma urgência que transparece, no desafio de procurar sentido, também estético, para um caos que, na verdade, não aspira a ganhar uma ordem única mas antes a transformar-se num caos mais humano e partilhável. É no espaço entre a coexistência dos paradoxos – por exemplo, entre os mais luxuosos condomínios fechados e a escolha do alternativo, saindo fora do radar das tecnologias, do ‘greening of the self’ ou do viver ‘off the grid’ – ou num permanente fluxo, nomádico, em trânsito entre um extremo e outro e tudo o que embate em nós pelo caminho, que se situam as propostas dos criadores da BoCA, a começar já esta semana. Mas esta é apenas uma porta de entrada possível, porque há muitas outras. Entremos então.

Aram Bartholl (artista conceptual sedeado em Berlim) faz uma clara afirmação contra o controlo da informação disponibilizada por todas as pessoas na Internet com a peça “Dead Drops”. O título foi buscar aos tempos da espionagem das grandes guerras em que um espião deixava, num local secreto, uma mensagem para outro espião. A essa troca chamavam “dead drops”. O que ele faz – o projecto inaugurou originalmente em 2010, em Nova Iorque – é disponibilizar uma “partilha de ficheiros offline” em pens deixadas em diversos lugares públicos de Lisboa e Porto. O conteúdo vai sendo alterado com a natureza da interacção que todos os utilizadores façam com aquele medium. Qualquer pessoa pode ligar a pen ao seu computador e aceder aos ficheiros e/ou carregar ficheiros seus, que podem ser textos, fotos ou vídeos. Nas várias paragens por onde já passou, “Dead Drops” difere naquilo que oferece, dependendo muito dos autores que disponibilizam os materiais iniciais. Em Lisboa, a lista inclui Ana Borralho & João Galante, Anastasia Ax, Anthony Hamilton & Alisdair Macindoe (AUS), Aram Bartholl, Cecília Bengolea & Nigga Fox , Crinabel Teatro & Digitópia, Diogo Evangelista, Filipa Francisco & Pedro Tudela, Florentina Holzinger & Claudia Maté, François Chaignaud & Marie-Piere Brébant, Damien Jalet & Gilles Delmas, Héctor Zamora, Ivan Argote, Jan Martens, Jenny Hval, Jérôme Bel , João Maria Gusmão & Pedro Paiva, … “Dead Drops” pode ser visto de 17 de março a 30 de abril (dia 17, também, o artista está na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto para um ‘workshop paint’, às 14h30).

O círculo do vício do desejo e frustração é apenas uma pequena parte da equação de multiplicidade de influências e relações imprevistas que participam de “Pinball Bosch”, ‘peça teatral’ – segundo Rodrigo García, o seu autor – que dialoga com o tríptico “As tentações de Santo Antão” de Hieronymus Bosch, patente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. É ali que está instalado um flipper totalmente alterado – ou ‘preparado’, pensando na relação com o piano de John Cage -, que materializa a nova obra de García (inaugura dia 17, às 17h, e fica patente ao público até diz 30 de abril). “O flipper”, diz em entrevista, “é talvez uma performance, do jogador, do público que joga”.

Na odisseia que já faz parte da história desta peça, o encenador e escritor incorpora referências muito diversas, uma delas decorrente de ter identificado na pintura de Bosch “muito LSD”, como também disse na entrevista a publicar pela BoCA: “Pensei inicialmente na possibilidade de partilharem o mesmo espaço, de aproximar a máquina de flipper ao lugar onde se encontrava o tríptico, mas desisti. Incomodaria quem deseja desfrutar em silêncio da obra de Bosch. Depois pensei que seria melhor separar a máquina de jogo, que estivesse num espaço teatral, negro e escassamente iluminado e rodeado de colunas de som, para potenciar o onírico do quadro, e pensei em iluminar o tecto de vermelho, como que recordando o inferno de Dante e o consumo de LSD. Há muito de LSD em “As Tentações de Santo Antão”, como em “2001 Odisseia no Espaço” de Kubrick.”

Se em Rodrigo García encontramos o movimento repetitivo entre desejo e frustração, a expressão paradoxal do real que os Von Calhau! tornam evidente em “Tau Tau” (estreia dia 17, às 19h30, no Teatro da Politécnica, em Lisboa, e repete  no dia 18, às 21h) joga-se entre a punição e o prazer, a ordem que gera uma desordem. A ‘ordem’ significa o poder, quem oprime a desobediência, as forças da ordem. Encontramos essa ‘ordem’ a que se referem na escola, encontramos na acção policial, por exemplo… E os Von Calhau! encontraram a materialização da operação de transformação da ordem em desordem num objecto carregado de simbolismo (pelo menos assim era em Janeiro de 2017, numa entrevista sobre onde estava a peça ainda em fase de processo de criação): o chicote.

Há quase três meses, a dupla explorava a seguinte interrogação: “a ideia de que, na tentativa de estabelecer ordem através de certos objectos, que em si contêm um significado que é claro, como o chicote, na execução e utilização desses instrumentos por repetição, cria-se justamente uma antítese com aquilo que era a sua ordem inicial. Ou seja, na utilização desses objectos há uma desordem que é óbvia e isso estabelece imediatamente um paradoxo. Os meios necessários para estabelecer a ordem são equívocos, geram desordem. A nós essa ideia surge-nos como se uma espécie de ritualização desses mesmos objectos, que convocam justamente o contrário da função para a qual foram feitos.”

Na performance-concerto inédita que Tianzhuo Chen dá com Aisha Devi e os Asian Dope Boys (LUX/Frágil, dia 17, às 23h), há elementos que se cruzam com os mundos artísticos já aqui referidos. Tianzhuo Chen, criador chinês, natural de Pequim, cujo repertório se espande pela performance, instalação, vídeo, desenho, música…, inscreve o corpo no centro de toda a sua obra. E, por via deste, amplifica toda a experiência que o corpo pode viver. Nessa exposição sensível, o ritual, e a apropriação simbólica de imagens e códigos provenientes das culturas e categorias do saber muito diversas, é convocado como um fim de festa, onde a desobediência já nem é uma questão que se coloca, porque o caos finalmente instalou-se numa febril emorregia de imaginação e cor. Estamos para além do desejo e frustração ou ordem e caos, tudo participa da mesma unidade temporal. Tianzhuo Chen lembra uma actualização de um Matthew Barney em ácidos, despojado de qualquer restrição estética e despudorado relativamente a qualquer hierarquia de sistema de valores, onde coexistem budismo, hip hop, voguing, fetishismo…

Num dia apenas, a bienal BoCA pode também ser isto: uma viagem de contra-cultura ou cultura de resistência inteligente, subversiva, que cria comunidade numa partilha de segredos, offline, começando com Aram Bartholl para uma viagem ao fim da noite onde o tempo dobra, por entre Deus e o Diabo, rituais de punição e desordem, a experiência do ser se altera e escapa-se do domínio da ordem, superando a descrição de Jenny Hughes: a vida surge mais intensamente colorida e não desaparece, os efeitos desestabilizadores que passam por excessos sensuais apagam as aparências e, em vez destas, os sentidos captam a evidência de algo visível, mais humano, para os quais os olhos antes estavam cegos.