Do religioso ao profano, há novos caminhos para uma espiritualidade mundana na BoCA 2019, eis um primeiro roteiro para essa peregrinação
Do religioso ao profano, há novos caminhos para uma espiritualidade mundana na BoCA 2019, eis um primeiro roteiro para essa peregrinação
Texto de Claudia Galhós
Há evocações evidentes do desejo do espiritual, de renúncia a uma condição agrilhoada no materialismo hiper-realista. Nessa ânsia de emancipação, o efémero das artes performativas e do gesto artístico inscrito numa temporalidade transitória, pulsante de vida, confronta-se com a própria essência do ritual de comunhão, gerado por comunidades tanto mais efémeras quanto radicais na sua promulgação de que é possível resgatar o humano. Na BoCA 2019 não há lugar meio termos. Conspurcam-se as entranhas das igrejas, capelas, museus, carpintarias e outros lugares de culto do espectáculo com sentimentos arrebatados para dissipar a nebulosa que nos enche de cegueira. Estes são apenas alguns sinais de anunciação de uma devoção herege – é deste grau de convivência das diferenças que aqui se trata!
As aparições mais óbvias surgem num gesto, artístico e político, que operam colisões marcantes, que abrem fissuras na tendência de um discurso estético – e político – condicionado pelo estigma do politicamente correcto. Estas aparições mais óbvias permitem traçar um roteiro de xagas abertas nas profundezas de lugares confinados a outros códigos.
Comecemos pelo Museu de Arte Antiga, para ver a ‘senhora lacrimosa’ na Capela das Abertas. A ‘senhora lacrimosa’ é Meg Stuart, coreógrafa e bailarina que aqui se apresenta em género de madona profana, numa projecção vídeo (que intitulou “The Only Possible City”, até 30 de abril), cujo rosto assim alterado se confronta com o ornamento do espaço envolvente, ainda à espera de obras de restauro, e que foi o primeiro convento carmelita em Portugal, feminino, fundado em finais do século XVI.
Num outro recanto do mesmo Museu, na Sala do Tecto Pintado, projectados em vídeo, dois corpos entrelaçam-se fundindo dois tons de pele, um de tonalidade branca como cal e outro levemente mais escuro, numa dança comovente pela fluidez com que os membros se confundem, reformulando a silhueta humana, misto de austeridade e delicadeza, gerando um novo corpo. A vídeo-instalação “Alignigung 2” de William Forsythe, sugere uma outra aparição de colisão, estranhamento de conformidade e harmonia, que se desdobra sem sentidos quando entreolhado na relação com a pequena escultura de Rodin (“Danaide”) que antecipa a sala onde o vídeo se apresenta.
O vídeo de Forsythe é quase transparência do corpo, a diluir-se e desaparecer na brancura da tela, sem sombras, parecendo flutuar fora das normas do espaço e do tempo, tal como na escultura de Rodin o corpo se dilui na pedra. Nessa fragilidade do eminente desaparecimento da forma humana, afirma-se uma materialidade efémera, sólida na convicção que surgere, da presença dos corpos projectados no ecrã e na pedra.
As relações improváveis que surgem como sintomas de um renovado desejo de religação (remetendo para a origem primeira da palvra “religião”, do latim “religare”) são intersticiais – mesmo se este texto mais não faça do que enunciar alguns exemplos óbvios. Essa superação de uma materialidade simples, em que a materialidade é presença esmagadora de acesso a um espiritual desejante de religação com o outro ou de formulação de novas entidades construídas a partir do encontro de múltiplos, está presente também na instalação do Projecto Teatral, na desconcertante poesia que o objecto suscita, de interrupção e religação da paisagem de fé em que se instala, no Convento de São Pedro de Alcantara (e toda uma maravilhosa narrativa possível de enunciar suscitada pelo mito de São Simeão que lhe dá título, “São Simeão da Montanha Admirável”, com o que traz de simbólico da entrega sacrificial do corpo, da austeridade, da recusa da vida material…).
De modo diverso, a cerimónia “Beyoncé Mass” revela da dissolução de incompatibilidades religioso-profanas, com o apogeu máximo nos Estados Unidos e as suas manifestações de culto: as letras das canções de Beyoncé servem de texto para a oratória celebratória colectiva, que termina em dança e festa ao som de música electrónica, depois da procissão em que quase todos os participantes entraram para comer a hóstia, que constou na repartição de pão mergulhado em vinho. A liturgia professa o culto do amor, com um coro de potentes vozes negras femininas e uma orquestra masculina, e dois ecrãs – em que uma das primeiras imagens ali projectadas constava da frase “Lisboa é racista”. O momento de comunhão foi anunciado, pela reverenda Yolanda Norton como sendo “aberto a todos – não importa quem és, de onde vens e aquilo em que acreditas”. Já uns dias antes, a formulação artística de Gonçalo M. Tavares e Os Espacialistas esquadrinhava um jogo que punha lado a lado com moedas e óstias, a ranhura de mealheiro e a do rabo… A performance é “Os Animais e o Dinheiro” e propõe um “Laboratório de Formas de Sentir Acima da Média”.
Em qualquer destas expressões performativas, o corpo surge como uma arma, o corpo surge como lugar de tensão, conflito, violência, oração, o corpo é reduto paradoxal do sagrado e do profano… É aí que se situa a vídeo-instalação “Spirit House” de Marina Abramovic, acolhida nas catacumbas das Carpintarias de São Lázaro, recontextualizando a obra criada inicialmente para um antigo matadouro das Caldas da Rainha, em 1997. As Carpintarias, nesta edição da BoCA, já se afirmaram como casa de cruzamento entre diversas profissões de fé – “qualquer que seja a crença”, como dizia Yolanda Norton – que recebeu Arca, saltos altos e mini-saia, olhos doces, irreverência e excentricidade, para a sua primeira palestra, inaugurando (no contexto da BoCA) uma variante nova aos géneros performativos que tem desenvolvido, mais enquadrado num registo de música. A BoCA 19 já vai na terceira semana mas, como diz o ditado popular, “a procissão ainda vai no adro”.