Casa-animal – um palco para o diálogo, para a experiência, para a renovação
Um palco para o diálogo, para a experiência, para a renovação
Texto de David Silva Revés
Fotografias de Bruno Simão / BoCA Bienal
É, como proposta última, ou primeira (adequemos o olhar), um palco. Um palco onde convergem e se relacionam múltiplos projectos – perfomances, filmes, conversas, instalações – desencadeando uma sinergia de comunidade enquanto apresentações que partilham o mesmo lugar de exposição.
Mas a Casa-animal, que a Musa paradisiaca apresenta nesta bienal, é uma construção ontologicamente instável. Desde logo, pelo título que a nomeia. No entanto, as caraterísticas que a definem, são as mesmas que a fazem inserir-se num território de múltiplas possibilidades – uma casa, um palco, um monumento, uma escultura, uma capela, uma estrebaria – que ampliam a sua capacidade discursiva e experiencial e lhe conferem o estatuto de forma em potência. Uma forma que se activa e completa pela relação vivencial que com ela vamos estabelecendo e que as suas qualidades materiais impõem ou condicionam. Um espaço de confluência – está aí a sua força.
Não terá sido, pois, uma coincidência o filme, também ele da autoria de Eduardo Guerra e Miguel Ferrão (dupla formadora da Musa paradisiaca) com o qual este projecto foi inaugurado. Fome animal, rodado entre os Açores e uma localidade perto de Évora no ano passado, é também um local de converção (de conversação). Nele são exploradas as relações que se estabelecem entre Homem e animal na procura de uma continuidade entre estas duas realidades aparentemente (e só aparentemente) distintas, através da descoberta de planos comuns de existência – a alimentação, o habitat. Quanto de animal há em nós? Quanto de humano existe num animal? A conciliação é desencadeada. Principiamo-nos para o retorno a uma origem comum.
E essa concialiação entre estas duas realidades (tornadas distantes) retoma novamente nas premissas – nas preocupações – que sustentam a Casa-animal e desencadeiam a sua materialização enquanto forma híbrida. Híbrida, desde logo, pela escala de construção, adequada tanto ao humano como ao animal, que revela uma forma de arquitectura particular e impõe uma noção partilhada de habitabilidade e convivialidade, na sua vocação à visitação e nas suas capacidades intrínsecas de se propor enquanto local de refúgio ou abrigo. Como uma casa.
Mas ao olhar para esta Casa-animal, uma imagem concreta, continua, surge na minha mente – a de um espigueiro. (E talvez seja essa a valência-última de qualquer obra, a de nos trazer outras imagens). Não considero a relação inocente ou remota. As semelhanças entre as duas estruturas são imediatas e desvelam novas camadas de compreensão. Tal como um espigueiro, ligado à cultura agrícola do norte do país, no seu propósito enquanto estrutura de abrigo e proteção das colheitas que o tornavam num santuário e aos cereais o seu objecto sagrado, a Casa-animal reconfigura-se enquanto local de culto. Há mesmo a formação de uma espécie de liturgia desencadeada no percurso que fazemos até ao complexo dos Coruchéus, onde está instalada. Ali, a arquitectura sobressai no espaço, influi uma presença física, material, traz uma aura específica ao local e condiciona um olhar. Seria impossível não fazê-lo. Chegamos a esta casa com a vontade peregrina de experienciação daquele tempo e lugar no quais nos fazemos surgir. Queremos fazer parte, queremos “tocar”, somos “tocados”. Como uma igreja medieval que abre as suas portas e mostra os seus tesouros, a Casa-animal “abre-se” e dá a ver o conjunto de acções que ali são desencadeadas. Uma casa-capela.
E retomamos à ideia de palco. Mais uma vez, é pela configuração arquitectónica desta estrutura que podemos evocar novas projecções (as imagens trazem outras imagens, lá está). A sua elevação do chão, bem como o seu carácter desmontável, articulável e transportável, trazem reminiscências das primeiras formas de propagação e circulação do discurso oral, dos palcos medievais e do nomadismo que os caracterizava. A Casa-animal pode estar aqui como em qualquer outro lugar, extendendo e expandindo os seus discursos, criando novos diálogos e formando novas espacialidades.
É nesta ideia de construção discursiva, da sua transitividade e da forma como os seus objectos se apresentam enquanto marcas ou propiciadores disso mesmo que podemos enquandrar a Casa-animal na prática artística da Musa paradisiaca. Os objectos que compõe – e falo de objectos no sentido mais lato do termo – são fruto de um diálogo operante estabelecido com diversas entidades que, de forma activa, contribuem para a sua contretização fazendo da Musa paradisiaca uma família em expansão, um organismo vivo, um local de encontros, experiências e partilha de onde resulta um verdadeiro projecto estético, ético, social e político. De resto, a Casa-animal é disto um exemplo e comprova-o na forma como foi criada (através da colaboração com o aquitecto Miguel Roxo e o engenheiro Vasco de Barros) ou na forma como nela convergem as múltiplas vozes individuais da open call lançada, que definiu a sua programação como mais um palco actuante desta bienal, e que a tornam, justamente por isso, um espaço de diálogo, polivocal, em constante desenvolvimento e transformação, que se vai alimentando e evoluindo com todas essas contribuições, construindo uma rede de relações e experiências – renova-se e renova-nos, enquanto espectadores participantes, num movimento contínuo.